domingo, 4 de abril de 2010

Professor Morgado



Augusto Cesar de Oliveira Morgado (1944 – 2006) foi um dos professores de Matemática mais extraordinários que conheci. Já o admirava através de seus livros, mas ao conviver com ele descobri também um ser humano incomparável.

Morgado foi vice-líder de nossa equipe na Olimpíada Iberoamericana de Matemática de 1990, e na viagem de ida para a Espanha
sentei ao seu lado no avião, na área de fumantes (na época, isso ainda existia) da classe executiva (fomos recolocados devido a overbooking). Foram dez horas de viagem cercado de fumaça de cigarro, mas eu quase nem senti o tempo passar, nem espirrei, nem me incomodei muito com o ar pesado... Estava avidamente absorvendo tudo o que eu podia da sabedoria singular do Mestre sentado ao meu lado.

Dias depois, já em Valladolid, cidade onde se realizaria a Olimpíada, Morgado volta de uma reunião e encontra-nos no salão de entrada da residência onde estávamos hospedados. Estávamos os estudantes  brasileiros e mais alguns de outras equipes, socializando. Ele vem direto até mim:

"Luciano, acabam de anunciar algo que eu acho que vai lhe interessar: Eles vão dar uma bolsa de estudos aos medalhistas de ouro para cursarem a graduação em Matemática aqui em Valladolid. Eu achei que isso tinha a sua cara."

É difícil colocar em palavras toda a emoção, ou melhor, todas as emoções que eu senti ao ouvir isso (inclusive, neste exato momento, percebo meus dedos tremerem sobre o teclado). Mas vou tentar. É melhor fazer uma lista:

1) "Isso tem mesmo a minha cara! Mas como é que o Professor Morgado sabe disso? Como ele me conhece tão bem após poucos dias de convivência?" – Ele era uma lenda para mim, e os poucos dias de contato com ele aumentaram exponencialmente minha admiração. E, agora, eu estava percebendo que Morgado se interessava por mim, olhava verdadeiramente para mim tentando me compreender, e até torcia por mim! Imediatamente me senti uma pessoa mais importante.

2) "Ele acha que eu posso ganhar uma medalha de ouro... ele conhece bem este tipo de competição, e ele realmente acredita que eu posso conseguir a medalha de ouro..." – Eu já estava bastante motivado a lutar pelo ouro, especialmente depois do meu "fracasso" (era assim que eu pensava na época) na Olimpíada Internacional alguns meses antes. Mas perceber que Morgado acreditava realmente em mim elevou minha motivação a outro patamar.

3) "Estudar aqui na Espanha... morar aqui, tornar-me independente, conhecer uma nova cultura, aprender um novo idioma... sim, eu gostaria muito!"  – O significado da medalha de ouro acabara de mudar. O prêmio não representava mais apenas uma conquista pontual, uma linha no meu currículo, uma medalha em uma gaveta ou um diploma emoldurado e pendurado na parede... representava uma oportunidade de transformação pessoal, acadêmica e profissional.

4) "Por que ele se dirigiu especificamente a mim, e não a todos do grupo? Pelo histórico de resultados de cada um, eles têm mais chances de ganhar ouro do que eu... será que eles não gostariam de ganhar essa bolsa também?" – Eu achava natural todos se animarem com a possibilidade da bolsa de estudos, mas logo percebi que todos os outros membros da equipe tinham outros planos. Tanto que, de fato, os quatro brasileiros que participaram ganharam medalha de ouro (uma dessas medalhas foi moral, mas isso é outra história); eu fui o único deles a aceitar a bolsa. Inevitável admirar a profundidade da sabedoria do Professor Morgado: ele conhecia bem todos os alunos da equipe.

Esses pensamentos ocorreram em poucos segundos, e não da forma ordenada como escrevi. Naquele momento, hoje impresso com muita claridade em minha mente, fui inundado com um turbilhão de emoções: admiração, surpresa, desejo, motivação, empolgação, vontade...

No primeiro dia de prova, como é usual nessas competições, tínhamos 4 horas e meia para resolver 3 problemas. Eu estava inspiradíssimo, e entreguei minhas soluções mais de uma hora antes de terminar o tempo previsto. Foi a única vez que me lembro ter saído antes do final em uma prova importante. Mas eu já tinha lido, relido, passado a limpo mais de uma vez, e tinha total convicção de que estava tudo certo.

No segundo dia também fui muito bem, resolvendo 2 dos 3 problemas e lutando até o fim no outro.

Foi meu melhor desempenho em uma Olimpíada de Matemática. E o estímulo recebido do Professor Morgado foi absolutamente fundamental para isso. Aprendi que o olhar de um professor sobre seu aluno pode ter um efeito muito mais significativo do que suas palavras, conceito hoje presente em quase todas as palestras que tenho oportunidade de ministrar para colegas professores.

Após a correção das provas, Morgado elogiou abertamente a maneira como redigi minhas soluções. Desde então ele passou a me estimular a escrever.

Por isso, ao iniciar este blog, é inevitável lembrar dele. Quando o Mestre Morgado faleceu, senti-me, de certa forma, mais adulto, mais responsável, mais professor e menos aluno. Tivemos, com ele, o tempo que poderíamos ter tido. Ouvimos, dele, o que poderíamos ter ouvido. Agora cabe a nós honrar este legado. Todos os que tivemos o privilégio de aprender com ele devemos, agora, passar adiante.

18 comentários:

  1. Nossa Luciano, imagino quanto emocionante foi. Pequenas palavras de um professor podem mudar totalmente a auto-estima do aluno antes de uma prova.

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  2. Nossa Luciano, imagino quanto emocionante foi. Pequenas palavras de um professor podem mudar totalmente a auto-estima do aluno antes de uma prova.

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  3. Rufino Carmona06/04/2010, 23:52

    Pô Luciano! Eu havia lido somente o primeiro parágrafo hoje à tarde. Não sabia que o texto era maior. Quando eu cliquei em comentários, apareceu o restante. E, olha, fiquei empolgado. Como eu lhe disse, resolvi muitos exercícios dele, mas não tive o prazer que você teve de conhecê-lo. Você não o conheceu somente. Pelas suas palavras parece que você foi um discípulo dele. Tanto que depois da sua morte, você passou a ter um legado nas mãos para passar para um a um dos seus alunos.

    Ah! E eu curto muito um escritor, como você, que consegue trazer ao concreto, algo totalmente abstrato. É isso que você faz ao enumerar os sentimentos, que você próprio ressalta que não aconteceram necessariamente naquela ordem.

    Sabe, eu não sou mestre como você (não tenho mestrado). Mas leciono em cursos livres de assessoria de imprensa, jornalismo econômico e jornalismo político. Adoro dar aulas, passar conhecimento adquirido. Saber que eu posso transformar vidas com palavras ou somente observando, como fez o professor Morgado com o seu discípulo.

    Já não ministro cursos há quase dois anos por motivos mil. Mas, na verdade, acho que faltava motivação. Esses seus dois primeiros posts me inspiraram. Vou procurar o Sindicato de Jornalistas e me oferecer para dar os meus cursos novamente. A remuneração é baixa, mas a gratificação é tão grande que vale a pena.

    Obrigado, cara!

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  4. Obrigado pelos comentários, Rufino e Juliana.

    Rufino, é sempre bom ver gente boa se animando a dar aulas... vá em frente.

    O texto completo na primeira página do Blog eu achei que ficava muito grande, por isso fiz a quebra. Mas pelo jeito não ficou claro. Vou dar um jeito de melhorar isso...

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  5. Caroline Albuquerque12/05/2010, 23:31

    Eu conheço esse sentimento de motivação e entusiasmo quando um dos professores que a gente mais admira mostra confiança no nosso trabalho e no nosso potencial. Mas no meu caso o nome do professor é Luciano e o da aluna é Caroline. Sou muito grata por TUDO. Todo conhecimento e pensamento campeão que você me transmitiu!

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  6. Em Portugal é, neste momento, 1h e 22min e eu acabo de ler este espantoso depoimento do PROFESSOR LUCIANO CASTRO.
    Também eu fiquei emocionado.
    Tenho todos os vídeos dos vossos cursos e se TODOS Vocês são MARAVILHOSOS, você, PROFESSOR LUCIANO, é o que eu sempre desejei ser e nunca consegui ser como professor de matemática.
    Obrigado.

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  7. Parabéns Luciano. O Morgado foi muito importante para minha vida profissional, me inspirou a ser professor. Estou conhecendo o seu trabalho pela primeira vez, e acabo de me tornar um grande admirador seu. Felicidades. Joselias.

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  8. Messias A Silva17/09/2010, 18:06

    Parabéns Prof.Luciano, leciono Matemática em Alagoas e me orgulho de ter como aluna a filha do Prof. Hilário Alencar, em 2003, quando soube dos Cursos de Aperfeiçoamento para Professores do Ensino Médio e desde então participo de quase todos, dos que não, baixo as aulas e as assisto depois. Neste mesmo ano, em 2003, tive o privilegio de ter como aluno um medalhista [Lucas Gouveia(PRATA)] na OBM. Puxa... não existe outra emoção indescritível... Eu, ali bem perto do Wagner e Paulo Cesar... e todos aqueles brilhantes alunos. A partir deste momento me senti cada vez mais feliz por SER PROFESSOR DE MATEMÁTICA, embora tudo começara em 1976, com ainda 9 anos de idade, ao ouvir o Professor Luiz Antônio, da 5ª série... e me encantei... me apaixonei... pela MATEMÁTICA. Depois de formado e já lecionando, tive o prazer de participar de Encontro de Professores de Matemética em Pernambuco e encontrar o "meu mestre" Prof. Luiz Antônio.
    Concordo plenemente contigo e confirmo as palavras do Prof. Elon na última seção de perguntas do curso 2010.2... Ele é insubstituível.
    Hoje quando leio MATEMÁTICA FINANCEIRA, enxergo o PROF. MORGADO.

    Um Forte Abraço.


    Prof. Messias A Silva - Maceió/AL.
    profmsilva@hotmail.com

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  9. Leandro G Cardoso27/07/2011, 11:44

    MORGADO O MAIOR DOS MESTRES, PENA SÓ TER O CONHECIDO PELO VIDEO APRESENTADO POR VOCÊS
    NO PROGRAMA DE APERFEIÇOAMENTO DESTE ANO, E
    CLARO, PELOS SEUS EXTRAORDINÁRIOS LIVROS(em especial o de geometria).
    AINDA NÃO SOU FORMADO, MAS JÁ TRABALHO EM CURSOS E ALGUNS PROJETOS E SEMPRE TOMO OS LIVROS DO MRGADO COMO PRINCIPAL FONTE DE CONSULTA.
    REALENTE EU IMAGINO A SUA EMOÇÃO NESTE MOMENTO, POIS ESTE ANO EU SENTI ALGO MUITO PARECIDO, QUANDO TIVE AULA COM OS MAIORES PROFESSORES DE MATEMÁTICA DA ATUALIDADE(PAULO CÉSAR, EDUARDO WAGNER, LÚCIANO, E O EXTRAORDINÁRIO ELON LEGES LIMA, COM UMA CONTRIBUIÇÃO RIQUÍSSIMA DO PROFESSOR BRANCO)ESTE CONTATO ME INCENTIVOU BASTANTE A ESTUDAR MAIS PARA SER UM PROFESSOR TÃO BOM QUANTO VOCÊS.
    ABRAÇO PARA TODOS OS PROFESSORES E MUITO OBRIGADO PELO CURSO.

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  10. Olá Luciano!
    Morgado realmente é uma referência eterna pra todos nós. Fiquei encantado com a didática que ele possuía. Através dos vídeos do PAPMEM postados na página de downloads do IMPA, eu tive a oportunidade de vê-lo em aula Luciano, daí, despertou em mim uma vontade incondicional de ser professor de Matemática. No mês passado, ao apresentar combinatória, eu tive a felicidade de passar pros meus alunos os "Mandamentos de Morgado", dos quais, você cita em uma de suas aulas pelo programa.

    Parabéns pelo grande trabalho Luciano, com certeza, Morgado, em algum lugar, está muito orgulhoso por ter tido alunos, hoje professores, tão qualificados, como você e Paulo Cezar, que estão entre os melhores professores de Matemática do país, juntamente, claro, com o Professor Elon (eu não poderia deixar de citá-lo).

    Espero conhecê-lo em algum curso do IMPA. Será um enorme prazer.

    Visite também o meu blog: http://professorjuniorvieira.wordpress.com/

    Meu e-mail: jairufsj@gmail.com

    Um abraço!

    Jair Vieira Silva Júnior, Itamarandiba - MG.

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  11. Lindo texto. Fui aluno de Morgado em 1984, depois trabalhamos juntos em 1985-1988 em várias olimpíadas. Foi sempre uma honra ir para seu apartamento na Senador Vergueiro para preparar ou corrigir provas e para conversar. Sua morte em 2006 muito me abalou, mas vejo que o que deixou segue influenciando muitos de nós.

    Obrigado pelo depoimento, Luciano.

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  12. boa noite como faco pra ter contato com vc pq eu queria aprender a matematico eu to co m muita dificudad eu cursando primeiro ano meu imei e gliciarenata1@hotmai.com

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  13. Seu texto é incrível e inspirador. Obrigada.

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  14. Olá Professor Luciano...
    Recentemente me recomendaram um texto para publicação em um blogue que mantenho. Acabei publicando o texto, com alguns acréscimos, mas por ter percebido a presença do texto em outros blogues, resolvi por retirá-lo do meu blog e organizei apenas uma publicação sobre o tema, que é justamente de uma das aulas do Professor Morgado.
    Estou recomendando este seu ótimo artigo na minha postagem. Não conheci o professor Morgado, mas assisti vários de seus vídeos e tenho alguns dos seus livros.

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    1. Ah... O post sobre o tema está em: http://xarlles.blogspot.com.br/2014/07/JSMorgadoxSeba.html

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  15. Professor Liciano Monteiro de Castro.
    Ontem procurei por Morgado e, infelizmente vi que ele tinha falecido. Mas, antes, escrevi um texto sobre que passo abaixo para ti. Na época, em 1971, ele me convidou para jantar em uma churrascaria em Botafogo, Rio de Janeiro, que me fez uma proposta: dar aulas na escola Naval. Como eu estava saindo da Petrobras e ingressaria no Serviço Federal de Processamento de Dados - SERPRO, mudando de vida profissional, fiz a opção de não seguir com ele no ensino. Hoje, após 42 anos sinto remorso de não ter aceito. abaixo o que escrevi. Sei que do outro plano ele deve ter lido minha homenagem.
    Fui aluno de Morgado, dei aula de "Cálculo de Diferenças Finitas" como monitor na Escola Nacional de Ciências Estatísticas" e aprendi a ser professor com ele. Ótimo professor e amigo dos alunos. Era rígido em suas atitudes e no ensino. Lamento, desde há algum tempo em não ter acompanhado ele na Escola Naval. Sinto saudades de meu tempo universitário. Ao sair da Ence continuei dando aulas por mais 27 anos não seqüenciais. Morgado, se leres esta msg, lembre-se do Bahia, Antonio Noceti da Ence. Idos 1971. Abraços.... Bahia 

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  16. Professor Liciano Monteiro de Castro.
    Ontem procurei por Morgado e, infelizmente vi que ele tinha falecido. Mas, antes, escrevi um texto sobre que passo abaixo para ti. Na época, em 1971, ele me convidou para jantar em uma churrascaria em Botafogo, Rio de Janeiro, que me fez uma proposta: dar aulas na escola Naval. Como eu estava saindo da Petrobras e ingressaria no Serviço Federal de Processamento de Dados - SERPRO, mudando de vida profissional, fiz a opção de não seguir com ele no ensino. Hoje, após 42 anos sinto remorso de não ter aceito. abaixo o que escrevi. Sei que do outro plano ele deve ter lido minha homenagem.
    Fui aluno de Morgado, dei aula de "Cálculo de Diferenças Finitas" como monitor na Escola Nacional de Ciências Estatísticas" e aprendi a ser professor com ele. Ótimo professor e amigo dos alunos. Era rígido em suas atitudes e no ensino. Lamento, desde há algum tempo em não ter acompanhado ele na Escola Naval. Sinto saudades de meu tempo universitário. Ao sair da Ence continuei dando aulas por mais 27 anos não seqüenciais. Morgado, se leres esta msg, lembre-se do Bahia, Antonio Noceti da Ence. Idos 1971. Abraços.... Bahia 

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